quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O pai que se tornou mãe

Uma coisa bonita para vocês :)

José Eduardo Agualusa. “Estranhões e Bizarrocos”

Toda a gente sabe que são as mãe que trazem os filhos dentro da barriga. Os bébés formam-se no ventre das mães, crescem, e depois saltam cá para fora – para a luz. Por isso dizemos que as mulheres dão à luz.

O que pouca gente sabe é que há uma excepção. Existe uma espécie animal em que é o pai que cria os filhos dentro da barriga e é ele que os entrega à luz: o cavalo-marinho.

Como é que isto aconteceu? É essa a história que hoje vos quero contar: uma incrível história de amor. O fim talvez seja um pouco trsite. Mas é sempre assim: as histórias de amor só são felizes quando não as contamos até ao fim.

Há muito, muito tempo, no tempo em que os Homens ainda não falavam, no tempo em que os dinossauros ainda andavam pela terra, nesse tempo vivia no mar um casal de cavalos-marinhos. Ele chamava-se Mário, ela Maria. Ela chamava-lhe Márinho, ele chamava-lhe Mariaminha. Mário e Maria andavam sempre juntos. O mar, para eles, era um imenso jardim. Naquele tempo estava tudo no princípio, todas as coisas eram novas e brilhavam (como um par de sapatos acabados de estrear). Mário e Maria gostavam de passear, de descobrir animais estranhos, paisagens perdidas, outros mares.

- Olha, Márinho! – gritava Maria espantada – vê como são bonitas!...

Eram medusas. Bailavam lentamente entre as algas, desapareciam nas ondas, pareciam feitas apenas de água e de luz.

- Também se chamam alforrecas ou águas-vivas – disse-lhe Mário – Não têm boca, mas mordem.

Maria gostava do nome águas-vivas. Mário explicou-lhe que elas se chamam assim porque Deus, para fazer a primeira criatura, misturou a água com o lume e a isto juntou barro. Porém, antes de juntar o barro, caiu-lhe das mãos um pouco de água, e Ele percebeu que essa água já estava viva: era uma alforreca. Por isso, porque Deus não chegou a dar-lhes forma, é que as alforrecas são animais tão simples – não têm boca, não têm braços nem pernas. Mas por causa do lume queimam quando alguém tenta agarrá-las.

Maria também gostava das baleias. Eram grandes como montanhas, mas muito delicadas, e não faziam mal a ninguém. Cantavam ao amanhecer, brincavam com os filhos, juntavam-se para ver o espectáculo do pôr do sol.

Nos dias de tempestade o mar escurecia. Maria tinha medo. Nesses dias abraçava-se a Mário e ficava a ver os peixes – coitados dos peixes! – a girarem, meios tontos, arrastados pelas fortes correntes.

Uma manhã Maria acordou doente. Tinha perdido o brilho. Ela que sempre tivera uma cor tão bonita – todo o seu corpo era de um amarelo iluminado – estava a ficar baça e transparente. Sentia-se muito leve, sentia que alguma coisa se apagava lentamente dentro dela. Sentia-se muito leve, sentia que alguma coisa se apagava lentamente dentro dela. Mário, sempre tão calmo, ficou nervoso. Foi consultar o golfinho que é um animal inteligente e muito viajado; mas o golfinho nunca tinho visto nada assim. À medida que as horas passavam Maria tornava-se menos existente – desaparecia. Primeiro desapareceu-lhe a cauda, as barbatanas perderam a cor, e até a sua voz ficou mais fraca, como se ela estivesse a afastar-se para muito longe.

- Não me deixes – pediu-lhe Mário – Ainda temos tanta coisa a descobrir.

Maria ficou com pena. Não podia deixá-lo tão sozinho. Com as poucas forças que çlhe restavam encostou-se a ele.

- Vou dar-te os nossos filhos – disse, e abriu-lhe a barriga e colocou dentro deles todos os seus ovos -. Quando eles nascerem mostra-lhes o mar.

Disse isto num suspiro e desapareceu. Durante os primeiros dias, sozinho. Mário sentiu-se perdido. O mar deixara de ser um jardim: achava-o agora grande, escuro e perigoso. E sem a alegre surpresa de Maria nada lhe parecia realmente novo. Passado algum tempo, porém, notou que o seu corpo se modificava – a barriga crescera, tornara-se firme e redonda, e ele começou a sentir-se outra vez alegre, num estranho alvoroço, embora não soubess muito bem porquê. Era como se tivesse uma festa a crescer dentro de si.

Então, numa manhã de muito sol, com o mar todo iluminado, Mário viu que a sua barriga se abria, e viu saltarem lá de dentro dezenas de pequeninos cavalos-marinhos. Eram os seus filhos.

Talvez há pouco eu me tenha enganado. Parece-me agora que esta história tem um final feliz. Porque decidi que ela acaba aqui, num nascimento, e porque a partir daquela manhã de sol, passou a existir neste nosso planeta um pai que dá à luz.